Em meio à tragédia da Covid-19, o epidemiologista britânico Adam Kucharski acha positivo que o jargão da ciência tenha entrado no cotidiano: nunca antes tanta gente falou sobre imunidade de rebanho ou curva epidêmica. Para ele, porém, parte do público leigo parece ter ouvido seletivo para as mensagens dos cientistas.
Professor da London School of Hygiene & Tropical Medicine, referência em saúde pública, e autor de “As regras do contágio” (Record), best-seller internacional, Kuchasrki é matemático de formação e se tornou um dos cientistas mais influentes do mundo na resposta à Covid-19, com mensagens sobre a pandemia que nem sempre agradam.
— Acredito que por um ou dois anos ainda teremos nosso dia a dia afetado, talvez bastante — afirma, mas sem catastrofismo. — No longo prazo, suspeito que este acabará se tornando outro vírus global, como os do resfriado comum.
Quão eficaz uma vacina de coronavírus precisa ser para deter a pandemia?
A vacina ideal seria uma que impede a maior parte das pessoas de se infectar e essa proteção dure por muito tempo. Suspeito que as primeiras vacinas a se tornarem disponíveis, pelas evidências até aqui, vão impedir as pessoas de ficarem doentes. Possivelmente, elas vão prevenir a infecção um pouco, talvez não em todo mundo, e não por longo tempo. Sendo otimista, creio que no fim deste ano ou no começo do próximo teremos vacinas que serão úteis, mas não para frear a pandemia de vez. Elas nos permitiriam diminuir o risco de as pessoas adoecerem de maneira severa. Depois, outras vacinas poderiam nos conduzir ao fim da pandemia. Acho que veremos vários estágios ao longo do próximo ano em termos de quão efetivas as vacinas são. Medidas de contenção precisarão continuar por algum tempo.
O senhor arriscaria dizer quando teremos nossas vidas de volta?
Acredito que por um ou dois anos ainda teremos nossa rotina afetada, talvez bastante afetada. A esperança é a de que teremos uma vacina que possa proteger, sobretudo, os grupos de risco na primeira metade do ano que vem. Mesmo que a transmissão continue ocorrendo, não vamos ver tantas internações, com o impacto que elas tiveram neste ano. Mas creio que em algumas partes do mundo, que tiveram muita dificuldade em controlar o vírus, como alguns lugares da América Latina e da Ásia, onde muitos grupos de jovens foram infectados, isso vai construir uma certa imunidade e frear um pouco o surto. Nessas áreas, a segunda onda não deve ser tão ruim quanto a primeira. No longo prazo, suspeito que isso acabará se tornando outro vírus global como os de resfriado comum, para o qual os idosos já têm alguma imunidade e pessoas mais jovens adquirem infecções mais amenas.
Há explicação sobre a extensão do dano da Covid-19? Por que ebola, Sars e H1N1 não paralisaram o planeta?
Há dois fatores que influenciam a extensão do impacto de uma epidemia. Um deles é quão fácil ela se espalha. O outro é o que acontece quando as pessoas se infectam. A gripe H1N1 se espalhava de modo muito fácil, difícil de controlar, mas o impacto final nas pessoas era relativamente baixo, sem grandes números de mortes. Vírus como ebola e Sars provocam altos índices de fatalidade, mas como a transmissão ocorre sobretudo com pacientes claramente sintomáticos, é possível identificar esses casos, rastrear os contatos e conter a transmissão. Infelizmente, o atual coronavírus é muito difícil de controlar, muitas pessoas o transmitem mesmo com sintomas leves, mas uma vez que as pessoas se infectam, particularmente se são idosas ou de grupos de risco, elas podem ficar seriamente doentes. É uma combinação infeliz: um vírus difícil de controlar que pode ter grande impacto.
Desde o início da pandemia, quais foram as mudanças mais importantes na ciência da Covid-19?
Um elemento muito importante são os dados genéticos que nos ajudaram a entender a rota global que o vírus fez, quando ele entrou e quando a epidemia começou a decolar em vários lugares. As sequências genéticas agora nos permitem reconstruir essa rota. Tivemos estudos de prevalência de anticorpos para entender a extensão dos surtos. E agora temos as informações necessárias para entender com precisão o que estava acontecendo no início da epidemia. Também houve um refinamento da compreensão do que é um ambiente de risco para transmissão do vírus. A mensagem de um lockdown é a de que “não sabemos onde está o risco, então manteremos todo mundo em casa”. Agora há uma consciência maior de que alguns ambientes são bem mais arriscados que outros. Não se trata apenas de manter uma determinada distância. O que conta é se o local é fechado, com quem você interage, qual o tipo de atividade naquele ambiente. Não estamos mais vendo fechamentos de escala nacional.
E quais os erros mais comuns que os leigos cometem sobre epidemiologia?
Um deles tem relação com prazos inerentes a dados diferentes. Nós sabemos que xiste um intervalo, não um atraso, entre a ocorrência de casos e o crescimento dos outros indicadores, como internações e mortes. As pessoas também não estão medindo aquilo que acham que estão calculando: pode-se achar que há um aumentos de casos, quando na verdade o aumento da testagem puxa o crescimento. Em surtos, muitas coisas acontecem ao mesmo tempo. As pessoas se infectam ganhando alguma imunidade, governos implementam medidas de controle, pessoas mudam de comportamento com medo da pandemia. Tudo isso influencia a dinâmica dos surtos. Suspeito que o debate sobre qual a combinação exata que deu o perfil aos surtos de Covid-19 este ano ainda vai durar décadas.
Fonte: O GLOBO