No mês seguinte às eleições presidenciais, uma expressão tem ocupado lugar central no debate público. A fim de encontrar espaço para manter em R$ 600 o valor mínimo do Bolsa Família e recompor a verba de diversos programas no Orçamento de 2023, o governo eleito quer uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que permitiria extrapolar o teto de gastos em até R$ 198 bilhões nos próximos quatro anos.
A proposta tem provocado turbulências no mercado financeiro nos últimos dias, porque parte dos investidores teme o descontrole dos gastos públicos. Isso apesar de a limitação de despesas ter sido diversas vezes estourada nos últimos anos. O governo terá direito a gastar R$ 1,259 trilhão neste ano e R$ 1,8 trilhão no próximo. Afinal, o que é o teto de gastos?
Criado por emenda constitucional no fim de 2016, o teto federal de gastos é uma das três regras fiscais a que o governo tem de obedecer. As outras são a meta de resultado primário (déficit ou superávit), fixada na Lei de Diretrizes Orçamentárias de cada ano, e a regra de ouro, instituída pelo Artigo 167 da Constituição e que obriga o governo a pedir, em alguns casos, autorização ao Congresso para emitir títulos da dívida pública.
Considerado uma das principais âncoras fiscais do país, o teto de gastos tem como objetivo impedir o descontrole das contas públicas. A adoção desse mecanismo ganhou força após a crise na Grécia, no início da década passada.
No caso do Brasil, o teto estabelece limite de crescimento dos gastos do governo federal em 20 anos, de 2017 a 2036. O total gasto pela União em 2016 passou a ser corrigido pela inflação oficial, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), ano a ano, nos dez primeiros anos, de 2017 a 2026.
No fim de 2021, a fórmula de cálculo sofreu uma mudança. Até o ano passado, o teto era corrigido pelo IPCA acumulado entre julho de dois anos antes e junho do ano anterior. Uma nova emenda à Constituição alterou o período de cálculo e passou a considerar o IPCA efetivo dos seis primeiros meses do ano e a estimativa oficial do IPCA para os seis meses finais para corrigir o teto do ano seguinte.
Gatilhos
A emenda constitucional que introduziu o teto de gastos estabelece uma série de gatilhos que podem ser acionados caso os gastos federais cresçam mais que a inflação. Em tese, esses gatilhos seriam acionados em três estágios.
O primeiro proibiria a ampliação de quadro de pessoal e de reajustes reais (acima da inflação) para servidores e limitaria as despesas discricionárias (não obrigatórias) e de custeio administrativo à inflação. O segundo proibiria reajustes nominais a servidores e limitaria os gastos discricionários e de custeio administrativo ao valor nominal empenhado (autorizado) no ano anterior.
O terceiro estágio proibiria reajustes do salário mínimo acima da inflação e cortaria em 30% os gastos com viagens, transferências e diárias a servidores públicos, mantendo as restrições do segundo estágio.
Esses gatilhos seriam disparados caso houvesse previsão no Orçamento Geral da União de que o teto seria descumprido. O problema, no entanto, é que o governo descobriu que só poderia enviar um projeto de lei orçamentária com despesas fora do teto caso os gastos discricionários caíssem a zero, um cenário que jamais seria alcançado porque inviabilizaria o funcionamento dos serviços públicos.
Para corrigir o problema, a emenda constitucional que resultou no novo marco fiscal, em 2021, permitiu o envio de orçamentos fora do teto de gastos quando as despesas obrigatórias sujeitas ao teto de gastos ultrapassarem 95% das despesas totais. A restrição vale tanto para o Executivo quanto para o Legislativo, Judiciário e Ministério Público. Diversos economistas, no entanto, dizem que o limite de 95% também é difícil de ser alcançado e, antes da discussão atual sobre o teto, sugeriam a redução para 85%.
Comparação
A maioria dos países que adota o teto de gastos o faz por meio de leis ordinárias ou de planos plurianuais, de no máximo três ou quatro anos. Além do Brasil, poucos países fixaram a âncora fiscal na Constituição, como Dinamarca, Cingapura e Geórgia.
Também diferentemente de outros países, o teto de gastos no Brasil inclui os investimentos (obras públicas e compras de equipamentos) e não tem válvula de escape em momentos de recessão ou de crise econômica. No Peru, que adota um teto de gastos desde 1999, a despesa não era corrigida simplesmente pela inflação, podendo ter crescimento real (acima da inflação) de 2% nos primeiros anos e de 4% a partir de 2004.
O teto de gastos no país vizinho também poderia ser descumprido quando o crescimento econômico fosse baixo e, em 2012, passou a excluir investimentos, programas sociais e gastos com segurança pública.
Furos
No sistema atual, o teto pode ser extrapolado em alguns casos: créditos extraordinários (relacionados a gastos emergenciais), capitalização de estatais não dependentes do Tesouro (mecanismo usado para sanear problemas financeiros ou preparar empresas para a privatização), gastos da Justiça Eleitoral com eleições e transferências obrigatórias da União para estados e municípios.
Nos demais casos, é necessário modificar a Constituição. Apesar da atenção em torno da proposta atual, o teto de gastos tem sido ultrapassado nos últimos anos. Desde a criação do mecanismo, o limite foi furado pelo menos sete vezes, das quais cinco por meio de emendas constitucionais.
Em 2019, o governo precisou aprovar uma emenda constitucional para retirar R$ 46 bilhões para que a União pudesse distribuir, aos estados e municípios, os recursos da nova cessão onerosa do petróleo na camada pre-sal. Como a transferência era voluntária, não obrigatória, foi necessário costurar uma emenda constitucional com o Congresso. A capitalização da estatal Emgepron, ligada à Marinha, para a construção de corvetas (tipo de navio) custou mais R$ 7,6 bilhões.
Em 2020, o Orçamento de Guerra para enfrentar a pandemia de covid-19 foi responsável por excluir mais R$ 507,9 bilhões, segundo cálculos do economista Bráulio Borges, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV-Ibre).
Em 2021, a emenda constitucional do novo marco fiscal permitiu um furo de mais R$ 44 bilhões para financiar o pagamento da segunda rodada do auxílio emergencial, que tinha sido ressuscitado após a onda das variantes gama e delta do novo coronavírus. Novos gastos com créditos extraordinários para o enfrentamento da pandemia elevaram para R$ 117,2 bilhões o valor excluído do teto no ano passado.
Também no fim do ano passado, a emenda que mudou a fórmula de correção do teto liberou mais R$ 64,9 bilhões e a emenda que permitiu o parcelamento de precatórios (dívidas reconhecidas pela Justiça) de grande valor liberou mais R$ 43,56 bilhões. O impacto para o Orçamento de 2022 está estimado em R$ 108,2 bilhões.
Por fim, em julho deste ano, a emenda constitucional que ampliou o valor mínimo do Auxílio Brasil para R$ 600 e criou os auxílios Caminhoneiro e Taxista foi responsável por retirar mais R$ 41,25 bilhões do teto. (Agência Brasil)