O policial legislativo Adilson Paz passou três horas em confronto direto com os invasores que depredaram o Congresso brasileiro no dia 8 de janeiro de 2023.
Viu a quebra da barreira de contenção às 14h42, a multidão de verde amarelo descendo pelo gramado até a rampa do Congresso, onde estava inicialmente posicionado, e a tentativa de tomada do Plenário da Câmara a partir do Salão Verde da casa, onde passou boa parte da tarde daquele dia.
Entre as cenas que ele guarda na cabeça, uma em particular chama atenção. No momento em que entra no salão da Câmara, o policial vê gente ajoelhada, rezando, e, à medida que caminha, escuta, entre os grupos que estão quebrando vidraças, obras de arte e tentando colocar fogo no carpete, gente dizendo que em pouco tempo o Exército viria lhes dar retaguarda.
“Na cabeça deles, a partir do momento em que invadissem os Três Poderes, as Forças Armadas dariam todo o suporte para que fosse decretado um golpe militar ou algo do tipo”, disse à reportagem Paz, que é o diretor da Coordenação de Segurança Orgânica do Departamento de Polícia Legislativa, algumas semanas depois dos ataques.
Essa ideia não nasceu no 8 de janeiro. Por mais de um ano, mensagens que circularam nas redes sociais espalharam a falsa ideia de que as urnas eletrônicas não eram seguras e de que a Constituição, por meio de seu artigo 142, autorizaria uma intervenção militar em casos excepcionais para restabelecer a ordem.
“Acontece na extrema direita e na extrema esquerda, assim como no centro. Está em toda parte.”
Muitos movimentos de direita e extrema direita, contudo, acabaram se beneficiando do fato de terem sido os primeiros a explorar as redes sociais como plataforma para comunicação política, pontua Lisa-Maria Neudert, pesquisadora do Oxford Internet Institute, ligado à Universidade de Oxford.
“Na Europa, os movimentos de extrema direita estão entre os primeiros que olharam para as redes sociais. Quando os partidos políticos começaram a experimentar nesse mundo, também foram os partidos de direita – e acho que isso lhes deu enorme vantagem”, avalia.
No Brasil, os estudos de análise descritiva feitos desde que as redes sociais mudaram a maneira como as pessoas se comunicam e consomem notícias sinalizam que o compartilhamento é maior entre grupos de direita e extrema direita, pontua o cientista social Tiago Ventura, pós-doutorando no Center for Social Media and Politics da New York University.
Foi o que observaram no último ciclo eleitoral Felipe Bailez e Luis Fakhouri, fundadores da Palver, plataforma que fez parte da força-tarefa do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) contra desinformação durante a campanha em 2022 e que monitorou de forma anonimizada 15 mil grupos de WhatsApp nesse período.
“Do primeiro para o segundo turno, a gente percebia que havia uma estratégia muito clara de propagação de fake news, e isso era mais difundido nos grupos que tinham um teor mais de direita”, relata Fakhouri.
“Nos nossos gráficos conseguimos ver que foi muito superior o número de fake news a favor de Bolsonaro quando comparado ao volume de notícias falsas a favor de Lula. Eles já tinham uma estrutura pra fazer isso — e faziam com muita consistência.”
A estrutura e a consistência às quais ele faz referência fazem parte do ecossistema da desinformação que se desenhou no Brasil com a chegada das redes sociais e a ascensão de Jair Bolsonaro como liderança da direita conservadora.
Pesquisadores que se debruçam sobre o tema vêm mapeando nos últimos anos as estratégias por trás das campanhas desinformativas ligadas ao bolsonarismo — uma espécie de “cartilha de desinformação”, que a BBC News Brasil reuniu em entrevistas e detalha a seguir:
Produção da narrativa
O ciclo começa com a produção do conteúdo em si, que pode ter diferentes origens: de perfis com poucos seguidores ou muito populares nas redes sociais aos chamados plataformas de junk news, sites de notícias que operam sem os rigores e valores do jornalismo.
O tom da mensagem, em geral, é polêmico e controverso, e não por acaso — as emoções engajam (especialmente o medo, a indignação e a surpresa, como mostra a pesquisa em psicologia social), e a ideia, nesse caso, é mobilizar o máximo de pessoas possível.
A estratégia vai ao encontro do discurso do escritor Olavo de Carvalho, falecido em 2022 e considerado “guru” ideológico do bolsonarismo, que afirmava que direita e esquerda estariam em meio a uma “guerra cultural” e que pautar o debate público seria uma estratégia para fortalecer o campo da direita conservadora.
“Ele costumava dizer que, ‘para pautar, você tem que chocar'”, diz Pedro Bruzzi, sócio da consultoria Arquimedes, que desde 2018 monitora as redes sociais.
Olavo de Carvalho ministrou durante anos um curso online de filosofia — apesar de não ter concluído sua formação universitária na área.
Formou milhares de alunos, alguns dos quais se tornaram parte do primeiro escalão do governo Bolsonaro, como Ernesto Araújo e Abraham Weintraub.
“Você tem que chocar, tem que causar, tem que falar palavrão — ele dizia isso. É a ‘chuva dourada’, sabe? ‘O que é golden shower’ pautou o debate no meio do Carnaval. Bolsonaro pautou o debate com um tuíte”, diz ele, referindo-se ao episódio ocorrido em 2019. A postagem, que fazia referência a uma prática sexual, foi excluída dias depois.
Bruzzi, que atualmente pesquisa a relação entre política e mídias sociais em seu doutorado na EAESP-FGV, conta que, quando começou a observar as redes em 2018, “as campanhas de desinformação eram toscas” nos meios bolsonaristas — algo que vai mudando com o passar dos anos.
“Era a fake news da ‘mamadeira de piroca'”, ele ilustra, referindo-se à notícia falsa que circulou naquela eleição e que acusava o Partido dos Trabalhadores (PT) de distribuir o objeto em creches pelo país.
“Eles não tinham tanto refino, mas tinham uma percepção, já naquela época, dessa construção, de pautar o debate. Isso é importante também.”
Teste de receptividade
Definido o conteúdo, o passo seguinte é verificar se ele provoca engajamento.
A equação do engajamento tem diversos fatores. Um deles são os influenciadores, gente que cresceu nas redes sociais, seja amparada por uma institucionalidade (como jornalistas e políticos) ou não (perfis que se tornam famosos sem que seus donos já fossem pessoas públicas).
Outro elemento importante é a predisposição que o público tem para embarcar no tema.
“A fake news pode até impactar, mas, se não tiver apelo na sociedade, o assunto vai morrer”, ressalta Bruzzi.
É o que apontam as pesquisas na área de psicologia social. As pessoas estão mais inclinadas a assimilar uma informação que está em linha com mensagens e valores que acreditam ser verdade.
É o fenômeno chamado de “viés de confirmação”: as visões e opiniões que confirmam as crenças de quem as está lendo são vistas como mais críveis, independentemente da qualidade do argumento.
Além disso, alguém que acredita em algo que não é verdade tem menos inclinação para aceitar argumentos que contradigam essa crença, como aponta um estudo publicado em 2016 pelos pesquisadores americanos Christopher Paul e Miriam Matthews, em que apresentam estas e outras características da psicologia humana que ajudam a entender porque as notícias falsas se espalhar mais rápido do que as verdadeiras.
Na fase do teste de receptividade, os assuntos que têm maior potencial para gerar impacto passam para a etapa seguinte, a da amplificação, enquanto aqueles que não engajam são remodelados ou simplesmente abandonados.
Felipe Bailez, da Palver, dá um exemplo prático nesse sentido que observou no monitoramento das redes.
Quando, às vésperas do segundo turno de 2022, a deputada Carla Zambelli sacou uma arma e a apontou para um homem em um bairro nobre de São Paulo, uma série de perfis de influenciadores bolsonaristas se manifestaram inicialmente em sua defesa.
“Quando viram que aquilo falhou, todo mundo se colocou contra.”
Credibilidade do porta-voz: desinformação participativa
Para que o conteúdo atinja o maior número de pessoas possível, além do apelo emocional do tema e da inclinação da audiência para engajar nele, a percepção de credibilidade dos porta-vozes é fundamental.
E, nesse aspecto, dois atores são importantes: quem produz a mensagem e quem a distribui.
O gerador de conteúdo, em geral, é alguém com “peso no debate”, diz Bruzzi: um influenciador, um político ou alguém que possa ser considerado “autoridade” em determinado tema.
Aquele que “entrega” a mensagem, por sua vez — que a compartilha no Facebook, no Instagram ou no grupo da família no WhatsApp —, é geralmente alguém muito mais próximo do interlocutor.
“A desinformação de extrema direita, que é muito associada ao bolsonarismo no Brasil, atua de maneira coordenada e difusa ao mesmo tempo”, pontua Bruzzi, referindo-se, de um lado, às lideranças que lançam os temas e, de outro, às pessoas comuns, que os amplificam e colocam em evidência quando compartilham e fazem os conteúdos circularem.
O WhatsApp tem um peso mais relevante no Brasil do que em outros países no contexto da desinformação.
E essa característica é também um desafio para os cientistas dessa área — como a informação é criptografada de ponta a ponta, realizar pesquisa com dados na plataforma é mais difícil do que em outras, e geralmente envolve acessos a grupos públicos, que são uma janela para apenas parte do que acontece nessa rede.
Ventura ressalta que, nos questionários que aplica em suas pesquisas, é comum que as pessoas digam que a rede por onde mais recebem notícias falsas é o WhatsApp.
Nesse sentido, ele chama atenção para um levantamento recente do Reuters Institute que apontou que quase metade (48%) dos brasileiros entrevistados disse consumir notícias pela plataforma.
“O WhatsApp não tem feed (um campo específico onde o conteúdo é exibido e o usuário pode navegar por ele) de notícias, então tudo isso é consumido via envio e compartilhamento.”
Ativação: expansão no debate público
Esse é o momento em que o assunto toma conta do debate público.
Os pesquisadores ouvidos pela reportagem ressaltam terem observado, nos últimos anos, que este costuma ser o momento em que o ex-presidente Jair Bolsonaro entra na conversa.
“Os nomes influentes testam os temas. Se não pegou, ‘flopou’, eles esquecem, enquanto Bolsonaro só vai na ‘bola boa’ — a gente viu isso em vários episódios”, diz Bruzzi.
“O caso de Bolsonaro e a Nicarágua durante a sabatina do Jornal Nacional. Esse tema já estava em alta no WhatsApp, em ascendência. Dias antes ele vinha crescendo”, ilustra Bailez, da Palver.
A questão da Nicarágua é um exemplo de como o ecossistema da desinformação vai se sofisticando com o tempo e passa cada vez mais usar notícias verdadeiras para construir narrativas falsas.
O governo de Daniel Ortega, que está no poder desde 2007, tem uma relação conflituosa com a Igreja Católica. Em agosto de 2022, chegou a prender o bispo Rolando Alvarez, que denunciava violações dos direitos humanos no país.
No Brasil, as mensagens que circulam em grupos bolsonaristas sobre o país nessa época trazem esse histórico acompanhado de fotos de Lula com Ortega e de insinuações de que, se eleito, o petista promoveria perseguição religiosa no Brasil.
Foi esse o teor de uma das publicações de Eduardo Bolsonaro em suas redes em 19 de agosto de 2022, uma montagem com os dizeres “Lula e PT apoiam invasões de igrejas e perseguição de cristãos”.
A postagem foi removida em setembro por determinação do TSE, por “deturpar e descontextualizar quatro notícias a fim de gerar a falsa conclusão, no eleitor, de que o ex-presidente Lula e o Partido dos Trabalhadores apoiam invasão de igrejas e a perseguição de cristãos”.
Em 22 de agosto — três dias depois dos posts do filho — Bolsonaro participa da sabatina do Jornal Nacional com a palavra “Nicarágua” escrita na mão.
Em setembro, ao condenar a derrubada do sinal da CNN do ar naquele país, o presidente toca no assunto e afirma que Ortega é apoiado por Lula.
No mês seguinte, já próximo do primeiro turno, questiona o petista sobre o regime na Nicarágua no debate da Band.
“A base já sabe como reagir a um tópico que aparece em evidência quando Bolsonaro o traz. A oposição passa a reagir a partir daquele dia, mas àquela altura ele já está consolidado”, aponta Fakhouri.
Bruzzi acrescenta um exemplo da disputa de 2018, também na sabatina do Jornal Nacional: “Bolsonaro não aparece com aquele livro que ele disse que ia mostrar do nada, ele chega já com uma trajetória desse assunto sendo ‘esquentado’ nas redes”.
Trata-se do episódio em que o então candidato trazia um livro de educação sexual que afirmava fazer parte do material didático usado por determinação do Ministério da Educação (MEC) em escolas — uma fake news que ficou conhecida como “kit gay”.
Infraestrutura de comunicação multiplataforma
As redes sociais não são o único instrumento usado pelas campanhas de desinformação, diz Bruzzi. Elas fazem parte de um sistema de comunicação mais amplo, que inclui a relação das redes entre si e delas com as mídias tradicionais.
“Enxergar a rede de maneira apartada do sistema é uma visão limitada da realidade.”
O conteúdo desinformativo circula entre as diferentes plataformas — como WhatsApp, Telegram, Facebook, Instagram, Twitter, YouTube, TikTok, Kwai — e as transborda, chegando, por exemplo, nos meios de comunicação tradicionais, sejam eles mais alinhados ao discurso do campo ideológico que promove o conteúdo desinformativo ou aqueles que se pautam pelos temas que aparecem em alta nas redes sociais.
“No ciclo de notícias 24 horas por dia os meios de comunicação estão sempre em busca de pauta. E o simples fato de algo estar ‘bombando’ na internet por si só faz alguns temas virarem assuntos, ainda que aquilo não tenha relevância e independentemente da razão que o tenha levado aos ‘trending topics'”, afirma Linvill, professor da Universidade de Clemson.
“Isso dá ainda mais credibilidade (ao conteúdo), torna a coisa mais real”, conclui ele, acrescentando que essa dinâmica também é muito presente no ecossistema da desinformação nos Estados Unidos, onde as emissoras de televisão são constantemente pautadas pelo debate nas redes.
Campanha permanente
Outra característica é a estratégia de campanha permanente — trabalhar ou reforçar um tema no decorrer de meses ou anos.
Um trabalho feito pelo NetLab, laboratório de estudos de internet e mídias sociais da UFRJ, que se debruçou sobre a disseminação de notícias falsas durante as eleições presidenciais de 2022, chama atenção para esse atributo.
Alguns dos temas que mobilizaram o debate — a alegação de fraude nas urnas e a ideia de que as pesquisas de opinião são manipuladas para desfavorecer Bolsonaro, por exemplo — já vinham sendo compartilhados nas redes pelo menos desde janeiro de 2021, quando tem início a coleta de publicações do estudo para mapear as narrativas desinformativas que usadas nas eleições.
“Conseguimos ver como diferentes temáticas se articulam em termos de volume e aderência ao longo do tempo na campanha permanente e analisar os eventos que desencadearam picos de atividade e de desinformação”, diz o texto.
“A repetição de conteúdos é essencial para familiarizar o público sobre narrativas de desinformação. Evidências indicam que a repetição aumenta a resistência de usuários à correção e à checagem.”
Persuasão, mobilização e as perguntas em aberto
Desenhado esse panorama, que tipo de risco concreto a desinformação representa às sociedades e, em última instância, às democracias?
Em outras palavras, qual o impacto das notícias falsas sobre o comportamento e as preferências políticas de quem as consome?
Essas são perguntas ainda sem resposta definitiva, um campo recente e vasto de estudo das ciências sociais e política.
“Acho que essa é uma questão de pesquisa em aberto. A gente precisa fazer mais pesquisa sobre efeitos causais e atitudinais do consumo de desinformação via mídias sociais”, avalia Tiago Ventura.
Nesta última eleição presidencial, o pesquisador realizou um experimento com foco no WhatsApp em que os participantes passaram três semanas sem consumir mídias na plataforma (vídeos e fotos).
Entre as conclusões, observou-se que a exposição a notícias falsas entre os usuários reduziu consideravelmente, mas que o efeito dessa redução em atitudes (como a preferência de voto, por exemplo), não foi estatisticamente relevante.
“Mas isso significa que WhatsApp não tem nenhum efeito na política, que a gente não tem que regular a plataforma? Absolutamente não”, diz o cientista.
“O WhatsApp é uma forma de mobilização. Você tem grupos que atuam na margem da lei se organizando a partir da plataforma, é preciso monitorar isso; é preciso controlar o nível de desinformação que circula. E há outras formas por meio das quais o WhatsApp pode afetar as atitudes que não só a partir do conteúdo, de espalhamento de desinformação”, completa.
A professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Nara Pavão, que tem conduzido com outros pesquisadores uma série de estudos sobre comportamento político e desinformação, afirma que há hoje uma extensa literatura nos Estados Unidos que aponta que as fake news não têm um poder de persuasão significativo.
“Nem as notícias falsas, nem as verdadeiras. As pessoas acreditam no que ‘querem’ acreditar, no que confirma suas predisposições políticas e partidárias”, destaca.
Na mesma direção de Ventura, ela afirma que essas constatações não significam que a desinformação não tenha impacto social concreto, que não represente uma ameaça à democracia e não deva ser combatida.
Em um experimento recente feito a partir de notícias falsas compartilhadas por perfis de políticos, seu grupo de pesquisa encontrou evidências que apontam que, ainda que as notícias falsas não tenham o potencial “de mudar drasticamente a opinião das pessoas”, elas contribuem para “mobilizá-las politicamente e torná-las mais ativas, mais propensas a adotarem comportamentos políticos” — algo que poderia ajudar a explicar, por exemplo, o caldo de cultura que culminou nos ataques de 8 de janeiro.
“A gente encontrou que as notícias falsas ativam as identidades políticas, por isso que elas mobilizam.”
Nesse sentido, para ela, a saída de Bolsonaro da Presidência por si só não desmobiliza o ecossistema da desinformação.
“Existe, sim, essa ideia, que é embasada empiricamente, de que os bolsonaristas puxam mais essa essa corda da desinformação, mas o que gera demanda pela notícia falsa não é só o bolsonarismo, é o partidarismo em geral, combinado a esse novo mercado informacional (do qual fazem parte as redes sociais)”, avalia.
“Não acho que um enfraquecimento de Bolsonaro mude o cenário drasticamente. Há outros países passando pela epidemia da desinformação sem ter um Bolsonaro na jogada. Eu diria que o bolsonarismo não é a principal variável, as principais variáveis são a estrutura das mudanças midiáticas e a polarização política.” (BBC)