Da junção da anarquia com o capitalismo vem o termo anarcocapitalismo. Em outras palavras, seria uma filosofia político-econômica que defende a total abolição do Estado dentro de um sistema capitalista.
O termo veio à tona nos últimos dias por conta da eleição de Javier Milei, que será o novo presidente da Argentina.
Durante a campanha, ao defender propostas radicais de redução drástica do poder estatal, ele se apresentou como um anarcocapitalista — ou ancap, na versão reduzida.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil dividem-se entre aqueles que acreditam ser essa ideologia uma contradição em termos e os que veem o anarcocapitalismo como uma versão extrema do neoliberalismo praticado principalmente nos anos 1980 e 1990 em países latino-americanos.
Os pesquisadores dizem que mesmo que Milei se autoproclame um anarcocapitalista ele não conseguiria implantar um sistema de governo assim — justamente porque uma pessoa eleita para ser chefe do Executivo do país não pode abrir mão da prerrogativa de ser a autoridade máxima da nação constituída sob esse moldes.
Rocha enfatiza que os ancaps são “completamente contrários à cobrança de impostos” e esta é uma “das principais defesas que eles fazem”. Segundo a cientista política, se trata de uma corrente “idealista, no sentido de que até o presente momento não há nenhum país anarcocapitalista”.
Professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a socióloga e cientista política Mayra Goulart explica que “o ponto central [da ideologia] é a postura crítica às instâncias de regulamentação”. E isto se baseia “na crença de que a disposição dos livres interesses no mercado, pelo mecanismo de demanda e oferta, são suficientes para distribuir e gerir a distribuição de qualquer tipo de recurso”.
“Subjacente a isso existe a ideia de que a desigualdade nessa distribuição de recursos não é inerentemente problemática, já que a livre disposição dos interesses no mercado é a melhor forma de gerenciar a distribuição, ainda que ela ocasione desigualdade”, problematiza Goulart.
Esta ideia bate de frente com o princípio de que o Estado, como regulador da sociedade, deve agir com o objetivo de impedir que as desigualdades gerem “externalidades negativas para os mais fracos”. “Os que defendem o contrário acreditam que as desigualdades que venham a acontecer são de alguma maneira respaldadas pelo mérito”, diz ela.
Assim, o que para muitos é visto como injustiça, para os ancaps se trata de darwinismo social. “Implica em uma crença de que aqueles que não são capazes de obter as coisas por meio de seu próprio esforço merecem ficar sem elas”, resume a socióloga.
Discurso versus prática
“Pelas declarações, Milei pode se autoconsiderar ancap. Mas, na prática, o que ele vai procurar ser é uma pessoa de um radicalismo de livre mercado, o que se chama na imprensa brasileira de ultraliberal”, comenta Rocha.
“Milei pode ser rotulado como ancap? Eu diria que ele é um libertário. Ancap ele pode ser pessoalmente, mas isso não significa que ele vá fazer um governo anarcocapitalista”, afirma o cientista político Leonardo Bandarra, pesquisador na Universidade de Duisburg-Essen, da Alemanha.
“Anarcocapitalismo é ausência de autoridade e governo é, por definição, uma autoridade. Um governo anarquista seria uma contradição em termos.”
“Ele entra num espectro neoliberal, mas mais extremo, misturado com o populismo que a gente tem agora”, acrescenta ele, recorrendo a exemplos como os ex-presidentes do Brasil, Jair Bolsonaro, e dos Estados Unidos, Donald Trump. “Ele quer uma motosserra para destruir tudo”, ilustra.
Embora concorde que o pensamento anarcocapitalista esteja presente em declarações e na plataforma de Milei, o jurista e cientista político Enrique Natalino, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), ressalta que “há algumas ideias nas quais seu pensamento se encaixa mais dentro de uma direita conservadora e até ultrarradical”. “É o caso de suas visões de liberação do uso de armas, que o aproximam muito do ex-presidente Bolsonaro”, exemplifica ele.
Da Islândia medieval aos teóricos do século 20
Os anarcocapitalistas recorrem a um modelo histórico para argumentar que uma sociedade organizada a partir da propriedade seria possível. No livro As Engrenagens da Liberdade, de 1973, o economista americano David Friedman afirma que se aplicado a uma sociedade muito maior e mais complicada, o modo de organização da Islândia entre 930 e 1264 seria um exemplo prático de anarcocapitalismo.
Segundo registros históricos, existiu ali um governo sem poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, onde nem burocracia nem leis criminais eram necessárias. A chefia era completamente baseada na lei do mercado. Os chefes, chamados de godi, tinham sua autoridade baseada na propriedade privada — quem quisesse liderar uma comunidade precisava comprar um conjunto de direitos chamado de godoro.
Mesmo sendo entusiasta do anarcocapitalismo, o próprio Friedman identificou o problema inerente à essa organização: os mais ricos estavam automaticamente impunes. O economista escreveu que “onde o poder está suficientemente concentrado isto pode ser verdade” e admitiu que “este foi um dos problemas” que acabaria resultando no colapso desse sistema islandês.
Na Argentina, Milei pretende privatizar completamente saúde, educação e até o Banco Central, dolarizar a economia e instituir um sistema de vouchers para que cada cidadão escolha o prestador de serviço essencial que preferir.
Para o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, professor na Fundação Escola de Sociologia de São Paulo e da Escola Superior de Propaganda de Marketing (ESPM), os ricos seriam os grandes privilegiados. “A tendência desse Estado anarcocapitalista é o favorecimento dos empresários industriais. Seria um Estado com feições em defesa dos interesses econômicos das elites”, diz.
Mas se a inspiração histórica é respaldada por uma longínqua experiência islandesa, a teoria do anarcocapitalismo é mais recente. Acredita-se que o primeiro a utilizar o termo tenha sido o economista americano Murray Rothbard (1926-1995), que defendia a soberania do indivíduo, respeitando o princípio da não agressão.
“Ele foi aluno da chamada escola austríaca [de economia] e teve uma militância nesse sentido. O pensamento ganhou notoriedade nos Estados Unidos na década de 1940”, contextualiza Natalino.
Entre as principais referências da escola austríaca estão os economistas — da Áustria, evidentemente — Ludwig von Mises (1881-1973) e Friedrich A. Hayek (1899-1992). “Eles se opunham à intervenção do Estado na economia e defendiam o livre mercado como ideia central”, resume Natalino.
Autor do livro Da Produção de Segurança, o economista belga Gustave de Molinari (1819-1912) é considerado um precursor do anarcocapitalismo porque foi um dos primeiros teóricos a ousar misturar as ideias anarquistas com o pensamento capitalista. O economista era crítico dos monopólios estatais e entusiasta dos direitos de propriedade e da ideia da iniciativa privada tomando conta da segurança.
O filósofo e economista teuto-americano Hans-Hermann Hoppe, um dos maiores pensadores contemporâneos do anarcocapitalismo, bebe nessa fonte — sempre fazendo referências elogiosas ao trabalho de Molinari.
“O ancap tem duas bases: uma econômica, influenciada pela escola austríaca, outra política que se vale da influência do anarquismo clássico do século 19, que se opunha à ideia de Estado, pregava a destruição do Estado”, complementa Natalino. “O anarcocapitalismo bebe nessa fonte, mas ele se diferencia do anarquismo classe pela defesa do capitalismo.”
Contradição em termos
Na opinião de alguns teóricos, é justamente nessa junção que residem os principais problemas. “Anarcocapitalismo é um termo polêmico. Na visão de anarquistas, não existe anarcocapitalismo”, defende Ramirez. “O movimento anarquista é contra a existência do Estado e de qualquer forma de exploração ou organização política que tenha como mandantes terceiros, como o Estado judiciário ou seja lá o que for. Dessa forma, existe a crítica de que não existe anarcocapitalismo, porque anarquia é oposto à existência do Estado.”
O sociólogo lembra, contudo, que no caso dos ancaps, a defesa é “pelo extremo radicalismo do liberalismo, constituindo a ideia de que o Estado sequer é mínimo, ele é zero”. “Desta forma, todas as relações econômicas seriam regidas pelo próprio indivíduo a partir da lei da oferta e da procura, sem a participação do Estado.”
Segundo a análise de Bandarra, há ainda outra incongruência ideológica presente no futuro governo argentino. E esta é personificada pela figura da vice eleita, a atual deputada Victoria Villarruel. “A anarquia é oposta ao totalitarismo, porque prega a ausência de autoridade. Então há uma complexidade o fato de um presidente supostamente libertário, ancap, ter uma vice que apoia memorar positivamente a ditadura militar argentina, uma das mais autoritárias que houve na América Latina”, argumenta o pesquisador.
“O capitalismo só existe em função de um Estado, um Estado burguês. Por isso há uma contradição na ideia de anarcocapitalismo”, acredita Ramirez. “No caso do neoliberalismo, por mais que se diga que o Estado é mínimo ou zero, isso é uma falácia: a esquerda diz que na verdade o Estado é mínimo ou zero para o povo, mas máximo para as elites.” (bbc)