O Brasil enfrenta desde o fim de 2021 uma completa ausência de informações centralizadas sobre as vendas de medicamentos controlados, que requerem retenção da receita e vão desde antibióticos, passando por antidepressivos e ansiolíticos, até entorpecentes, como a morfina.
O R7 levou o caso à CGU (Controladoria-Geral da União) e foi informado que após enfrentar “limitações de infraestrutura tecnológica” a agência reguladora desobrigou todas as farmácias privadas e hospitais de enviar informações de medicamentos. O processo se tornou opcional.
A decisão foi formalizada na RDC (Resolução de Diretoria Colegiada) 586, de 17 de dezembro de 2021, assinada pelo diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres.
O documento estabelece que “ficam suspensos, por tempo indeterminado, os prazos de transmissão de arquivos eletrônicos (XML) […] referentes às movimentações do estoque de medicamentos e insumos farmacêuticos de controle […] sujeitos à escrituração no Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC)”.
Na plataforma de divulgação dos dados do SNGPC, a agência afirma que, devido à RDC, “não é possível fornecer informações precisas sobre as vendas de substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial”.
Com a decisão, a Anvisa contraria uma de suas competências estabelecidas na lei de criação da agência (9.782/1992), que inclui “regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública”.
O médico sanitarista, fundador e primeiro diretor-presidente da Anvisa, Gonzalo Vecina Neto, entende que as inconsistências das informações do SNGPC são um problema sério.
“Ela [Anvisa] tem uma delegação legal para fazer todo esse controle de todos os medicamentos em todas as fases de produção e comercialização. O não funcionamento do sistema nacional é grave. Até 2014, era papel para cima e para baixo, papel que ninguém checava. […] O fato é que a ausência do sistema nacional impede de saber o que está acontecendo”, afirma.
Para o conselheiro pelo estado de Rondônia no CFF (Conselho Federal de Farmácia), Jardel Moura, se já existia uma precariedade no controle de medicamentos e substâncias por parte do poder público, agora o problema está ainda mais sério.
“Neste momento, o poder público, a autoridade sanitária, que seria a Anvisa, não tem mais o controle. Ainda assim, as regras — a portaria 344 e a RDC 471 — continuam em vigor e obrigam os profissionais farmacêuticos e os estabelecimentos a continuarem fazendo esse controle, principalmente no ato da dispensação desses medicamentos”, afirma.
Moura ressalta que, apesar de a maioria dos estabelecimentos e farmacêuticos seguirem as regras na hora de vender os remédios, há quem veja na indisponibilidade do SNGPC uma oportunidade para a burla.
“O SNGPC vinha para complementar essa situação, para não dar mais brecha ainda [à venda sem controle]. Era uma coisa muito mais burocrática, mas ajudava bastante. Com a suspensão, é possível que farmácias que não trabalham de maneira séria burlem o sistema, principalmente fora dos grandes centros.”
Agora todas as farmácias precisam apenas manter registros internos de compra e venda que estão sujeitos à fiscalização da Vigilância Sanitária de cada município, o que esbarra, de acordo com o conselheiro do CFF, na falta de profissionais para essas ações.
Vecina Neto cita como exemplo um medicamento que é problemático nos Estados Unidos, a oxicodona, um potente analgésico opioide que aqui é vendido (até 40 mg) com receita dupla — o mesmo tipo usado para se comprar antibiótico, por exemplo.
“Ela tem uma formulação que impede você de ter picos sanguíneos do produto. Ou seja, você toma um comprimido de 12 em 12 horas, dá uma subidinha e mantém a quantidade do analgésico circulando. Como não dá pico, em tese, ela não vicia. Mas descobriu-se que se você pegar o comprimido de oxicodona, moer e tomar o pó, ele dá pico, arrebenta com a formulação farmacêutica, e não tem uma absorção lenta. É isso que os americanos estavam fazendo com esse produto. Tem um monte de gente morrendo lá por overdose.”
Sem informações, não há como identificar eventuais problemas, especialmente o uso indiscriminado e o abuso.
O sanitarista entende que o sistema é uma burocracia, mas que visa “controlar o uso inadequado de medicamentos e o acesso de forma clinicamente adequada a medicamentos que são vitais”.
“O SNGPC nasceu com essa ideia. Ele vinha sendo pensado desde quando a Anvisa foi criada. Nós sabíamos que isso tudo poderia ser informatizado. Tem que ter um sisteminha que tem um volume violentíssimo de dados, porque todo mês, todas as farmácias, hospitais e clínicas têm que alimentar”, acrescenta.
A falta de dados sobre a venda de antibióticos, por exemplo, é outro risco que o Brasil corre, uma vez que não é possível monitorar uma classe de medicamentos que precisa ser consumida com muita cautela.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) tem feito reiterados alertas sobre o aumento da resistência bacteriana aos fármacos atualmente utilizados, em boa parte por causa do excesso de uso, que aumentou nos últimos anos, com a pandemia de Covid-19.
A CGU cobrou a Anvisa, mas até o momento não há uma previsão de quando o suposto problema técnico será solucionado.
O R7 também entrou em contato com a agência fiscalizadora, que não soube sequer dizer se será possível ter, ao restabelecer o sistema, os dados de medicamentos controlados vendidos no período do apagão.
O conselheiro do CFF imagina que a agência lançará um novo sistema, com capacidade de atender às necessidades de controle.
Para o fundador da Anvisa, a diretoria do órgão “deveria ser chamada à responsabilidade” e apresentar soluções, incluindo um sistema eficiente, para manter a transparência de informações que são fundamentais para a saúde pública brasileira.