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domingo, dezembro 22, 2024

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ARTIGO: O extermínio dos adjetivos

 

Por Moisés Selva Santiago

Um velho rei, depois de ver seus súditos boiando na superficialidade de relacionamentos pessoais e sociais, promulga uma lei exterminando o uso dos adjetivos. E a confusão começa. Linguistas e professores se exasperam: “Como pode uma língua sobreviver sem eles? Nossas palavras serão insípidas e geladas como um mármore?” Imediatamente foram detidos, pois violaram a lei ao usarem esses dois adjetivos. Horas depois, influenciadores incendeiam a mídia chamando o soberano de assassino cruel da livre expressão – e à tarde, são presos. O caos se espalha. Porém, ao sentir que a lei é pra valer, a sociedade revê sua forma de viver e se comunicar.

O padeiro apressadamente tira o cartaz onde se lê “pão especial” (ele entende que precisa fazer todo pão ser especial). As lojas cancelam as promoções imperdíveis (pois resolvem usar preços justos). Uma a uma as propagandas deixam de elogiar os produtos (porque fabricantes e comerciantes reconhecem que todo produto deve cumprir sua utilidade). E o mesmo acontece nas clínicas, delegacias, agências de viagens, órgãos públicos, vizinhança e transportes coletivos.

Na escola e na faculdade não se fala mais em professor e aluno bom ou mau, em respeito ao mais nobre significado do que é lecionar e aprender. O mesmo acontece no trabalho, com patrão e trabalhador. Na comunidade de fé, os fiéis deixam de endeusar os líderes e percebem a grandiosa simplicidade do Divino. E sai por aí: motorista e passageiro, comerciante e cliente, médico e enfermo, atendente e usuário: todos fazem competentemente o que deve ser feito para si mesmo e para o outro. As coisas e os relacionamentos passam a ser vistos e entendidos como devem ser. Sem exageros, sem achismos, sem apelos, sem jeitinhos, sem viralização midiática de mentiras – que alguns usam para que o povo permaneça ignorante.

Da sacada do palácio, o monarca observa.  A ausência dos adjetivos faz a corte virar um lugar silencioso onde todos se ocupam com algo produtivo. A Justiça segue mais rápida, como um rio que finalmente se livra dos entulhos que sujam e atrapalham a correnteza. Até os namorados aderem à simplicidade: não se ouve mais “eu te amo muito”! Poetas parnasianos engolem seco. Os advogados quase não falam mais nos tribunais. Cantores da sofrência se reinventam. Isso porque agora um olha para o outro respeitosamente o vê como ele realmente é.

Quando o rei recebe uma emissora de TV do exterior, explica: “Meu povo precisa dessa lei para dar valor ao que nunca deveria ter deixado de existir. Que um pai e uma mãe cumpram a missão de ser pai e mãe. Se é juiz, operário, comerciante, estudante, professor, artista, aposentado, jornalista, servidor público, empresário, cozinheira, psicólogo, cabo ou general – que vivam a imensa responsabilidade desses títulos. O fim dos adjetivos é um estímulo para que cada um pense no que verdadeiramente é e respeite a diferença do outro.”

O entrevistador pergunta sobre as eleições e o rei responde: “Sei que há políticos, bajuladores, bajulados, corruptos, corruptores, prevaricadores, preconceituosos, violentos, desonestos e todos os tipos de egoístas e hipócritas que não conseguem viver sem adjetivar a si mesmos e ao mundo. Mas esta é a hora de os candidatos apresentarem propostas concretas para o bem-estar do povo, sem apelações de tantos adjetivos. E o povo precisa votar não por causa dos adjetivos das propagandas eleitorais, mas pelo que o candidato tem condições reais de fazer para o fortalecimento do estado democrático de direito.” No final, o repórter quase dá boa noite ao rei, mas rapidamente raciocina e diz: “Desejo aos cidadãos a paz que se alcança quando se vive com a verdade, ainda que seja com o extermínio dos adjetivos.”

 

 

 

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