As estratégias globais de controle fracassam e levantam o alerta sobre o potencial impacto na saúde global. Há indicações de que a evolução do vírus que põe em risco a vida das pessoas, sobretudo os nascidos após a pandemia de H3N2 em 1968
Uma revisão conduzida pelo Instituto Pirbright, no Reino Unido, destacou a crescente preocupação com a transmissão sustentada do vírus da gripe aviária H5N1 de mamífero para mamífero. Publicada na revista Nature, a pesquisa liderada pelo especialista em influenza zoonótica, Thomas Peacock, sugere que as estratégias globais de controle atualmente em vigor estão falhando, levantando questões alarmantes sobre o potencial impacto na saúde humana.
De acordo com o trabalho, embora tradicionalmente os suínos tenham sido considerados hospedeiros intermediários ideais para a adaptação do vírus aos mamíferos, as recentes alterações na ecologia e na evolução molecular do H5N1 nas aves abriram novas portas para contágio. Segundo Peacock, a ciência acredita haver uma crescente evidência da transmissão desse vírus em mamíferos. “Alguns casos são muito claros, como o gado nos Estados Unidos, enquanto outros são menos, como os surtos em mamíferos aquáticos na América do Sul. Esses clusters de transmissão de mamífero para mamífero são bem novos para H5N1 e não foram registrados em surtos anteriores”, frisou ao Correio.
Segundo os cientistas, o Departamento de Agricultura dos EUA exige testes para H5N1 apenas em gado lactante antes de movimentações interestaduais, abordagem que deixa muitos aspectos da transmissão em aberto. Para Peacock, essa prática omite muitos dados, o que mantém pesquisadores, veterinários e formuladores de políticas no escuro.
Ao Correio, o cientista reforçou haver grandes lacunas de conhecimento sobre se o vírus representa a mesma, menor ou maior ameaça do que no passado, nos surtos de casos humanos graves em meados dos anos 2000 no Egito, Indonésia e Vietnã.
Outro ponto crucial abordado no estudo é o fenômeno da “recombinação genômica”. Esse processo ocorre quando dois ou mais vírus infectam ao mesmo tempo um único hospedeiro, possibilitando a troca de segmentos do genoma e resultando em novos híbridos. Acredita-se que a recombinação entre os vírus H5N8 e da gripe aviária de baixa patogenicidade, que deu origem ao H5N1 nas Américas, tenha acontecido na Europa ou na Ásia Central em 2020.
Manuel Palácios, médico infectologista do Centro de Segurança Assistencial (CSA) do Hospital Anchieta, em Brasília, frisa a falta de dados epidemiológicos consistentes. “Vimos a ausência de uma coleta sistemática e contínua de dados, isso deixa lacunas na compreensão de como o patógeno está se espalhando entre mamíferos e potencialmente entre humanos. Além disso, há a relutância de certos setores em adotar tecnologias de vigilância mais modernas.”
De acordo com Palácios, as mudanças climáticas também contribuem na propagação dessa zoonose, pois pode alterar os padrões migratórios de aves selvagens — um dos principais conservadores do vírus. “Isso aumenta o risco de interação entre espécies que normalmente não teriam contato, facilitando a transmissão entre aves e mamíferos. Além disso, o aquecimento global pode expandir os habitats onde o vírus circula elevando a possibilidade de surtos em novas áreas geográficas.”
Os autores mencionam que estoques de vacinas H5, antigenicamente relacionadas aos vírus circulantes, estão disponíveis e poderiam ser produzidas em larga escala usando tecnologias de mRNA, caso o H5N1 comece a se espalhar entre humanos. No entanto, a gravidade de uma futura pandemia ainda é incerta. Enquanto infecções humanas recentes mostram uma taxa de letalidade significativamente menor do que em surtos anteriores na Ásia, a falta de severidade nos casos observados nos EUA pode estar relacionada ao tipo de infecção, que ocorre principalmente nos olhos e não nos pulmões.
A publicação também destacou que pessoas mais velhas podem ter uma imunidade parcial ao H5N1 devido a exposições anteriores, enquanto indivíduos mais jovens, nascidos após a pandemia de H3N2, em 1968, podem ser mais vulneráveis a uma infecção grave caso ocorra uma nova pandemia.
Via de transmissão inusitada
Um estudo publicado na revista Conservation Letters indica o comportamento de cleptoparasitismo. Nele, aves marinhas, como fragatas e skúas forçam outras aves a regurgitar suas presas, pode ser uma via de transmissão do vírus H5N1. Esse patógeno provocou a morte de milhões de pássaros e sua disseminação é preocupante. A pesquisa, liderada por cientistas da Universidade de Nova Gales do Sul, na Austrália, analisou a distribuição e comportamento dessas aves, revelando que, se um cleptoparasita ingerir alimento contaminado, pode espalhar o vírus para novas populações durante as migrações. Disseminada globalmente, a detecção precoce da cepa é essencial para mitigar os riscos da gripe aviária.
(Correio Braziliense)