Conflitos políticos e econômicos envolvendo o Povo Paíter Suruí nos anos 1970 compõem a pesquisa de iniciação científica do acadêmico do Curso de Licenciatura Intercultural da Universidade Federal de Rondônia (Unir), Hgaibiten Suruí, 30 anos. Tradicionalmente, esses indígenas viveram na região noroeste de Mato Grosso e no sudeste de Rondônia. Na medida em que avançavam as frentes de expansão ocorreram os contatos com os não índios*.
Orientado pelo professor doutor Carlos Alexandre Barros Trubiliano, 38, Hgaibiten atribui à exploração madeireira um dos maiores golpes sofridos por esse e outros povos indígenas da região do Aripuanã.
O território Suruí mede 249,4 mil hectares. O avanço da fronteira econômica e o povo Paíter Suruí: o caso da criação da TI Sete de Setembro é o nome do trabalho.
Entre outros, a pesquisa menciona estudos da falecida geógrafa Bertha Koiffmann Becker, para quem o avanço capitalista ocorreu por meio de duas políticas de Estado que se interligam: a construção da rodovia BR-364 e, mais recentemente, de usinas e pequenas centrais hidrelétricas; a segunda refere-se aos programas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra): de Assentamento Dirigido (PADs) e Integrados de Colonização (PICs).
Essas políticas governamentais foram responsáveis pela migração de trabalhadores, investidores e aventureiros para Rondônia em busca de oportunidades. A burocracia e a disciplina estatais para assistir os migrantes permitiram aos fluxos migratórios ultrapassarem a sua capacidade de controle estatal, provocando situações de conflito pela posse da terra.
“O avanço populacional sobre a floresta gerou uma das principais atividades econômicas da Amazônia Legal, a indústria da madeira”, assinala o acadêmico. Segundo ele, a extração em escala industrial se iniciou em 1960, quando chegaram a funcionar 89 serrarias, número que saltou para três mil empreendimentos, em 1984.
“Especificamente no Estado de Rondônia, elas evoluíram de quatro empresas em 1953, para 781 em 1987”, constata Hgaibiten. Rondônia não passava de 37 mil habitantes na década de 1950. “Isso foi acontecendo a partir da abertura de picadas e estradas; até meados de 1960, a extensão das rodovias rondonienses era praticamente inexistente, contudo, em 1988, o estado possuía mais de 44 mil quilômetros”.
Coincidentemente, o quarto presidente da Funai no governo Ernesto Geisel, engenheiro Ademar Ribeiro da Silva, era oriundo do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), hoje DNIT. Com discurso amistoso, Ribeiro visitou os Suruís em 1977.
Entre as décadas de 1960 e 1980, a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) financiou a instalação ou reformulação de 131 projetos madeireiros industriais ao custo de meio bilhão de dólares (US$ 500 milhões) em subsídios diretos. “O avanço do desmatamento está diretamente ligado à história do povo Paiter Suruí, e o nosso contato com os não índios foi mais intenso com a criação do PIC Gy-Paraná”, relata Hgaibiten.
FACÕES, YARA, E “CERCOS DE PAZ”
“Ainda hoje, é possível escutar, nas vozes dos anciãos indígenas, relatos de experiências do contato com o homem branco, ele relata. “Uma dessas memórias foi narrada para a pesquisadora Edineia Isidoro, na qual os índios Arara contam acontecimentos relacionados ao período da instalação da rede telegráfica, entre os quais, a curiosa lembrança de que usavam os fios dessa rede para fazer instrumentos de pesca e caça” [Leia no final do texto].
Desde o final da década de 1960 a Companhia Colonizadora Itaporanga, pertencente aos irmãos José Cândido, Nilo Tranquilo e Romeu Melhorança, passou a vender lotes ilegalmente, introduzindo várias famílias na área indígena.
O assentamento irregular dos colonos causou diversos conflitos, lembra em livro a antropóloga Betty Mindlin. No antigo Jornal do Brasil, o jornalista Edilson Martins escreveu diversas reportagens mostrando essa realidade. “O contato entre os colonos e os Paiter Suruí foi decisivo para criação da Terra Indígena Sete de Setembro”, diz Hgaibiten.
O amanhecer na Linha 14, interior da Terra Indígena 7 de Setembro, em Cacoal: retrato em preto e branco da brava resistência Suruí [Foto Kim-Ir-Sen Pires Leal]
No final daquela década, nos limites entre os municípios de Cacoal e Espigão do Oeste, a colonizadora aliciou terras indígenas, vendendo-as para migrantes.
Estimava-se que cerca de mil famílias de colonos haviam comprado terras ainda não demarcadas, e por isso mesmo, sujeitas à usurpação. Em novembro de 1976, um médico de Cacoal se queixava ao jornal O Globo: “Desde que cheguei à região, venho observando o caso de colonos flechados por índios”.
Betty Mindlin lembra que até os anos 1980 os Suruís enfrentaram “conflitos graves e mortíferos”. “A companhia dos irmãos Melhorança demarcava lotes de 2 mil hectares vendê-los a fazendeiros de São Paulo e do Mato Grosso (…) A colonizadora já havia vendido um grande latifúndio de 2 milhões de alqueires, incluindo terras da área indígena Sete de Setembro, que pertenciam ao povo Suruí por direito”.
Colonos se revoltaram tentando impedir a passagem de funcionários da Secretaria de Agricultura e do Incra, no momento em que eles iriam parcelar as terras em módulos de 42 alqueires, conta Hgaibiten. Apontando algo ruim entre os acontecimentos daquele período: sem consulta e sem diálogo, famílias escorraçadas de seus lotes foram substituídas por outras selecionadas pelo coordenador regional do Incra, o Capitão da Aeronáutica Sílvio Gonçalves de Faria.
Esse confronto resultou na perda da metade do território Suruí para projetos de colonização e para empresas que ignoravam ou preferiam desconhecer a demarcação. “Suas terras foram invadidas por pequenos agricultores, comprimidos pelas empresas extratoras e empurrados para lá, provocando problemas de saúde, principalmente nas crianças”, relatava Betty Mindlin em 1985.
Hgaibiten cita importante trabalho de Ângela Pappiani e Inimá Lacerda (em 2016) a respeito de transcrições de memórias dos anciãos Suruís na época do contato com os não índios. Nas narrativas, é possível identificar que o procedimento “cerco de paz” foi adotado para aproximação com o povo Paiter Suruí, em 1969.
Gasalab Suruí, cacique da aldeia Gabgir, narrou como os yara (homens brancos) estabeleceram o contato: “Cada vez que pendurava os facões, ele fazia isso em lugar diferente e cada vez mais próximo, mais adiante, mais adiante e mais adiante, até chegar à beira do rio, e ali ele pendurou facões em um tapiri, e do outro lado ficou observando as pessoas pegarem”.
Os facões eram pendurados num lugar denominado Nambekó-dabadaqui-ba.
“Do outro lado do rio, os yara nos chamavam para pegar facões; as pessoas atravessaram o rio e chegaram mais perto. Eles, os que fizeram o contato, contavam que enquanto estavam pegando facão alguém sempre ficava com o arco armado, pronto para flechar. Temiam ser agarrados à força, mas o contato foi pacífico”.
ÍNDIO COM MEDO DE ÍNDIO
O ancião Gathag Suruí relembra os tempos Padxe sowesore ikn (“nós encontramos o conflito”): “Havia muito conflito, tínhamos medo dos Zoró, dos Cinta Larga, Gavião, e dos yara ey. Ficávamos encurralados, cercados por todos os inimigos, por isso ficávamos andando, rodando como um disco, sem saída”, ele narra.
Nesse vaivém, conforme descreve Hgaibiten, os Suruís voltaram e desceram o rio, do lado do território dos inimigos. O pai de Gatah conhecia o lugar e achava mais seguro ficar ali, porém, quando confiava que estava num lugar seguro, os reencontrava.
“Vimos muita caça, penas de arara, de jacamim, vimos a casa; não sei onde eles estavam, era uma aldeia Zoró. Naquele tempo vivíamos muito perto, todos os inimigos estavam num mesmo lugar, distante um dia, dois dias, uma semana de caminhada” contou um dia.
Em resumo, o panorama da divisa entre Rondônia e Mato Grosso nas décadas de 1960-1980 implicava conflitos multiétnicos entre indígenas e não indígenas, acirramento das guerras tribais e avanço da fronteira mercantil. Nesse contexto, em 1967, o sertanista Francisco Meirelles foi designado para contatar e ‘pacificar’ os Suruís e Cintas Largas, dando continuidade aos trabalhos do inspetor Hélio Bucker, chefe da sexta Inspetoria Regional da Funai, observa João dal Poz, sociólogo e membro do Conselho Indigenista Missionário, em 1994.
Em 1970, ano da proibição da lavra manual da cassiterita (minério de estanho), Chico Meirelles assumira a direção da delegacia da Funai (8ª) na Capital de Rondônia. Esse cargo também fora exercido pelo filho Apoena, em 1985. Mesmo que pesasse sobre Chico a condenação por problemas na gestão da Inspetoria do Pará, ele havia acumulado prestígio e respeito em seus anos de SPI.
Sua atuação na pacificação dos Xavante, durante a década de 1950, conferiu-lhe destaque nacional e simpatia com a opinião pública – a ponto de, em 14 de janeiro de 1954, o então presidente da República, Getúlio Vargas, recebê-lo em audiência para debater sobre a questão indígena.
Entre 1950 e 1970, Chico e suas ideias foram os principais representantes do modelo integracionista dos povos indígenas no Brasil, rivalizando politicamente com os irmãos Villas-Bôas, defensores do modelo protecionista. “Ele era visto com bons olhos pelos governos militares, porque acreditava que a integração dos povos indígenas à nação fosse um ‘tributo à civilização’; o índio entraria como fator étnico na formação da raça brasileira, por miscigenação e não por extermínio”, constata Hgaibiten na fala do sertanista.
“A ideia é promover a confraternização de índios com civilizados, pois não se pode contrariar uma política do governo de abertura de estradas que ele julga necessárias para nosso desenvolvimento”. “É um “tributo à civilização, discriminação é não deixar que os índios tenham acesso a nossos bens; a política indigenista é assunto tão difícil que Rondon passou toda sua vida buscando uma solução e deixou tudo na estaca zero, apesar do prestígio e da força que ele teve”, afirmava Chico à revista Veja em maio de 1973.
No primeiro governo ditatorial pós-1964, o marechal Humberto de Alencar Castello Branco (1964-1967), a questão amazônica era central. “Integrar para não entregar” a floresta, com vistas a garantir a soberania nacional, esse era o discurso.
Meirelles e a perspectiva integracionista defendiam o índio encarado como cidadão emancipado. “Somente quando fosse identificado como trabalhador ele desenvolveria seu potencial rapidamente”. Pode ser que tenha acertado, em parte, se for considerado o aspecto produtivo: Suruís hoje produzem o melhor café de Cacoal; jovens tiveram acesso à Universidade; e aquelas terras por anos invadidas são agora vigiadas por satélite do Google.
“MUITA TERRA PARA POUCO ÍNDIO”
Para o executivo federal, Meirelles se tornava peça chave na tentativa de solucionar os conflitos na Amazônia. Em 7 de setembro de 1969, Francisco Meirelles chefiou a expedição que fez o primeiro contato oficial com os Paiter Suruí; a equipe foi composta, dentre outros sertanistas, por seu filho Apoena. A data serviu para batizar a futura Terra Indígena homologada somente em 1983**.
Segundo o estudo de Hgaibiten, a morosidade estatal se assentou na confluência entre a especulação imobiliária, o colapso dos modelos de assentamento colonial em Rondônia e a perspectiva política, especialmente da elite regional: “muita terra para pouco índio”.
“Em 21 de agosto de 1976, o jornal O Globo noticiava: Funai quer que o Exército leve paz para área indígena. A matéria contava que, pela primeira vez no País o Exército poderia atuar para pôr fim a uma disputa de terras entre índios e brancos. O então presidente da Funai, general Ismarth Araújo Oliveira, alegava que a atuação da Polícia Federal fora insuficiente para conter os ânimos dos posseiros instalados na área indígena. Ele calcula que houvesse lá um contingente de cem mil posseiros, todos armados.
Nos frequentes atritos com indígenas, posseiros ainda sem título definitivo dos lotes obtidos com a colonizadora Melhorança se queixavam: “Os índios foram armados pela Funai: com flechas eles eram até humildes, e inspiravam confiança; muitos de nós fomos caçar com tempos atrás, e era comum em Espigão do Oeste um colono acompanhar um Suruí no meio da mata. A gente partilhava a caça e eles ficavam satisfeitíssimos, agora só se vê índio armado de carabina por aí afora” – contava ao jornal um dos colonos da linha 11.
A antropóloga Mindlin também relatava: “Os líderes Cádio e Itabira Suruí se armaram de arcos, flechas e espingardas e iniciaram a resistência à ocupação da reserva. Houve mortes de índios e colonos”.
A demarcação territorial teve início em 1976, e ficou a cargo da empresa Plantel, com sede em Goiânia (GO), a mesma que se responsabilizou pela demarcação da TI Igarapé Lourdes, dos povos Arara e Gavião, e da TI Roosevelt, dos Cinta Larga.
No entanto, conforme lembra Itabira Gapoi Suruí, a empresa ao mesmo demarcava terras administradas pelo Incra. “Era particular, ligada ao governo”.
No desvendar da trama que resultou a demarcação da TI Igarapé Lourdes, a pesquisadora Lediane Fani Felzke revela documentos do grupo de trabalho instituído pela Funai para acompanhar as demarcações: “Após uma explicação detalhada na área, com apresentação de vários mapas em diversas escalas, incluindo os de navegação utilizados pela FAB, por mim adquiridos no Rio, chegamos a um comum acordo da área necessária à sobrevivência dos índios nos postos indígenas: Igarapé Lourdes, 7 de Setembro e Roosevelt, “sem nenhuma preocupação do que por ali pudesse existir Incra, Itaporanga, grileiros…)”.
Embora sejam necessárias mais investigações, eles acreditam na possibilidade de que a equipe de demarcação da Plantel chegara às aldeias “ciente dos limites a serem demarcados, com vistas a garantir a propriedade de posseiros e da Cia. Colonizadora Itaporanga”.
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* Em inglês: As the expansion fronts advanced, contacts between Paiter Suruí and non-Indians took place. The following report is the result of research that aimed, in general, to understand the creation process of the Sete de Setembro Indigenous Land; specifically, it sought to identify the political and economic projects, as well as the conflicts that involved the non-indigenous and the Paiter Suruí people Keyword: Frontier, Territory, Paiter Suruí.
** A demarcação dos limites da Terra Indígena só ocorreu em 1976; a posse permanente veio pela Portaria nº 1561, de 29 de setembro de 1983, e somente em 17 de outubro de 1983 ela foi homologada, pelo Decreto Presidencial nº 88.867. Do contato oficial, em setembro de 1969, até a sua homologação, em 1983, a TI foi palco de sangrentas disputas.
E MAIS:
► Em meados do século XX, a região que compreende o sudeste de Rondônia e o noroeste de Mato Grosso era populosa e multiétnica, formada por três grandes etnias: Paiter Suruí, Cinta Larga e Zoró. Estima-se que neste período coexistiam cerca de dois mil Cinta Larga, cinco mil Paiter Suruí e mil Zoró.
► Povos de hábitos seminômades, esses grupos tradicionalmente guerreavam entre si. Por meio das guerras tribais, as etnias interagiam umas com as outras, numa “lógica centrífuga”, possibilitando a manutenção de seus domínios territoriais e de suas especificidades identitárias. Entretanto, com o avanço da fronteira mercantil, as guerras tribais se acirraram e ganharam um elemento adicional: os yara ey (não índios).
(Por Montezuma Cruz)