Enquanto a pandemia do coronavírus avança pelo interior do país, lideranças indígenas acusam o presidente Jair Bolsonaro de não ter tomado as medidas emergenciais necessárias para proteger seus povos da covid-19.
Além disso, dizem que essas comunidades estão ainda mais vulneráveis à pandemia por causa de ações do seu governo anteriores à chegada da doença, como a redução do programa Mais Médicos, o fim das demarcações de terras indígenas e o apoio de Bolsonaro a atividades ilegais praticadas em seus territórios por invasores, como garimpo e extração de madeira.
O Ministério da Saúde contabiliza até o momento 9.632 casos confirmados de covid-19 entre os indígenas e 198 óbitos. Já a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) considera que esses números estão subdimensionados e calcula que já haja 461 mortos e mais de 13 mil infectados nas comunidades.
O monitoramento feito pelos povos contabiliza também indígenas atingidos pela covid-19 que moram fora das aldeias. Há também a possibilidade de dupla contagem em alguns casos, já que a Apib soma os casos confirmados diretamente pelas comunidades aos dados do Ministério da Saúde, que não divulga informações detalhadas sobre as vítimas, como nome ou comunidade a qual pertencia.
Segundo o governo, há 750 mil indígenas, de 305 etnias, vivendo em mais de 5,8 mil aldeias no Brasil hoje. A preocupação entre lideranças dos povos e organizações que apoiam sua causa é ainda maior no caso de comunidades isoladas ou de recente contato com a sociedade: eles afirmam que uma eventual entrada do coronavírus nesses grupos pode dizimar essas populações, que tem um nível de defesa imunológica mais baixo.
Nas últimas semanas, lideranças indígenas conseguiram vitórias no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Congresso Nacional para obrigar o governo a adotar ações emergenciais.
Bolsonaro, porém, vetou na quarta-feira (08/07) trechos de uma nova lei que prevê medidas de proteção às comunidades indígenas, como a obrigação de garantir acesso à água potável e a itens de higiene, e a oferta emergencial de leitos hospitalares e de Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
O presidente também vetou a elaboração de planos de contingências voltados especificamente para os povos isolados ou de recente contato com a sociedade.
“O plano do governo é não ter plano algum”, crítica Juliana Batista, advogada do Instituto Socioambiental (ISA).
Para exemplificar a importância do planejamento para reagir à pandemia, ela cita a Terra Indígena (TI) Yanomami, a maior do país, uma área que se estende por Roraima e Amazonas, onde vivem 26.780 indígenas.
Além das aldeias, há sete povos isolados dentro desse território, onde a atuação de garimpeiros tem sido crescente. Hoje estima-se que 20 mil invasores trabalhem na exploração ilegal de ouro.
“Tem comunidade dentro da TI Yanomani que é preciso andar cinco dias para chegar à aldeia mais perto, onde tem pista de pouso para tirar de avião um infectado dentro da área. São situações extremas, que se não prevenir, não terá como remediar depois”, alerta Batista.
O Conselho Distrital de Saúde Indígena, órgão do Ministério da Saúde, identificou até quinta-feira (9) 80 casos de covid-19 dentro da TI Yanomani.
Apenas nas comunidades de Waikás, há 37 doentes, o que representa cerca de um quinto dos 179 indígenas que vivem nessa região da terra indígena.
Segundo o ISA, é uma das áreas mais afetadas pela atividade do garimpo e o contágio começou com um indígena que viajou em um dos barcos dos garimpeiros.
Na quinta-feira, o vice-presidente Hamilton Mourão contestou que sejam garimpeiros que estejam levando o coronavírus para dentro de comunidades: “A questão da chegada da pandemia nas terras indígenas… Não é por que têm elementos estranhos lá dentro que a pandemia chegou. As senhoras e os senhores têm que entender, na realidade amazônica, que o indígena sai de dentro da sua terra para ir até a cidade, seja para receber algum benefício, da nossa lei orgânica de assistência social, seja porque ele tem que comprar alguma coisa”, disse, ao ser questionado por jornalistas.
Juliana Batista, do ISA, reconhece que esse também é um problema, mas culpa novamente a falta de planejamento do governo para evitar esse tipo de contágio.
Ela diz que uma terceira forma de contaminação também tem ocorrido por meio de agentes da saúde que não sabem que estão com covid-19 e vão às comunidades sem serem testados antes.
“Temos casos de indígenas que desceram (das aldeias para cidades) em massa para buscar auxílio emergencial. Isso também é falta de informação por parte do governo. São todas medidas que exigem planejamento, articulação governamental”, diz Batista.
“O governo tomou algumas atitudes. Houve lugares com distribuição de cestas básicas para as comunidades não se deslocarem para as cidades. Mas não se vê uma medida estruturada. Como vai ser isso a curto, médio e longo prazo?”, questiona.
Mortes crescentes entre Xavantes
A situação é tensa também entre os Xavantes, etnia de 23 mil pessoas que vive em uma área fragmentada em nove terras indígenas no Mato Grosso. Já são mais de 200 casos de infecção confirmados e 23 óbitos em decorrência da Covid-19, segundo dados do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei).
Já a Ana Paula Sabino, que atua há 20 anos com os Xavantes e coordena da campanha SOS Xavante A’ uwe Tsari, diz que o coronavírus já matou 38 indígenas.
Ela conta que faltam insumos para tratar os doentes e que, por meio de doações, conseguiu mobilizar a compra de medicamentos com auxílio da ONG Expedicionários da Saúde. Além dessa carência, ela reclama que os indígenas não estão sendo orientados sobre o enterro das pessoas falecidas por covid-19, o que fez dessas cerimônias focos de novas contaminações.
“Numa pandemia dessas, você não pode mandar um caixão para a comunidade e achar tudo bem eles abrirem, é um absurdo. É verdade que os índios preferem levar os corpos para as aldeias, querem enterrar nos cemitérios deles, mas cade os protocolos, a orientação sobre como isso deve ser feito de forma segura?”, cobra.
Segundo Sabino, entre os mortos havia indígenas que receberam hidroxicloroquina, substância defendida pelo presidente Bolsonaro como forma de tratar a covid-19, mas que não tem sua eficácia para esse fim comprovada cientificamente.
O uso do medicamento no caso de contágio por coronavírus é criticado por muitos médicos devido à possibilidade de causar efeitos colaterais graves que podem até provocar a morte.
“É um governo que está promovendo genocídio nas comunidades indiretamente, com tratamento ruim”, critica ela.
Um documento obtido pelo jornal O Globo nesta semana confirmou que a substância tem sido usada em comunidades indígenas. Segundo o jornal, a ata de uma reunião promovida pelo Ministério Público Federal (MPF) em Roraima no dia 2 de julho mostra que o coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Leste, Tércio Pimentel, admitiu que a cloroquina enviada pelo governo faz parte de um kit dado pelo Ministério da Saúde para o tratamento da Covid-19.
Recursos para saúde indígena em queda
O Ministério da Saúde anunciou em junho que “investiu cerca de R$ 70 milhões em ações específicas de proteção aos indígenas para enfrentamento da covid-19”. Os recursos foram usados para a compra de mais de 600 mil Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), insumos em saúde e medicamentos, que foram enviados aos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs).
Segundo a pasta, isso inclui “372,7 mil máscaras cirúrgicas e N95, 166,7 mil luvas, 13,4 mil aventais, 16,6 mil toucas, 6 mil frascos de álcool em gel e também mais de 29 mil testes rápidos que garantem a testagem de todos os profissionais que vão entrar nas terras indígenas para atender a população”.
No entanto, levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) feito a pedido da BBC News Brasil indica que, mesmo com a crise do coronavírus, o total gasto pelo governo na saúde indígena no primeiro semestre deste ano ficou abaixo da despesa registrada na primeira metade de 2019.
Os dados foram extraídos do Siga Brasil, portal do Senado Federal que permite monitorar os gastos do governo, corrigidos pela inflação. Segundo essa fonte, foram efetivamente gastos com promoção e proteção da Saúde Indígena R$ 698,03 milhões de janeiro a julho do ano passado. Já no primeiro semestre desse ano, foram R$ 660,69 milhões (5,3% a menos).
Olhando o resultado por mês, os dados mostram que em abril e maio, meses em que a pandemia já estava com força no Brasil, essas despesas ficaram bem abaixo da registrada no mesmo período de 2019. Apenas em junho, houve uma alta relevante.
“Demorou muito tempo para o governo reagir e destinar recursos para a saúde indígena enfrentar a pandemia”, crítica Leila Saraiva, assessora política do Inesc.
Ela ressalta que os recursos para área já vinham em queda no ano passado. O total efetivamente gasto com saúde indígena em 2019 foi de R$ 1,48 bilhão, 16% a menos da despesa de 2018.
Para Leila Saraiva, o argumento de que faltam recursos usado pelo presidente ao vetar nesta semana trechos da lei que previa medidas emergenciais de proteção aos indígenas é “falacioso”.
Ela lembra que o Congresso aprovou um regime fiscal especial para enfrentamento da pandemia que permite aumentar o endividamento e romper o teto de gastos desse ano.
Além da redução dos gastos em saúde indígena, outro fator que, na sua opinião, deixou o atendimento aos povos mais precário nesse momento de pandemia foi a saída dos profissionais cubanos do programa Mais Médicos.
Logo após a eleição de Bolsonaro no final de 2018, o governo cubano decidiu deixar o programa brasileiro, se antecipando a uma decisão do futuro presidente. Isso porque Bolsonaro sempre atacou a parceria com o governo de Cuba no Mais Médicos.
Como é difícil atrair médicos brasileiros para atuar em territórios mais isolados, cerca de 90% dos profissionais do programa que atendiam em terras indígenas eram cubanos. Uma reportagem da BBC News Brasil mostrou que, após a saída de médicos cubanos, mortes de bebês indígenas cresceram 12%.
STF estabelece prazo para governo agir
Os vetos de Bolsonaro à lei que prevê as medidas emergenciais para os povos indígenas ainda podem ser derrubados pelo Congresso.
O governo, no entanto, já está obrigado a adotar uma série de providências por uma decisão do STF que saiu na quarta-feira (08/07), logo após o presidente vetar parcialmente a nova legislação.
A partir de uma ação apresentada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) com apoio de partidos de oposição, o ministro do STF Luís Roberto Barroso determinou que o governo crie uma Sala de Situação para a gestão de ações de combate à pandemia no caso de povos indígenas em isolamento ou contato recente, no prazo de 72 horas. Deverão participar representantes de comunidades indígenas, da Procuradoria Geral da República (PGR) e da Defensoria Pública da União (DPU).
Barroso também deu dez dias para o governo apresentar um plano de criação de barreiras sanitárias em terras indígenas, após ouvir a Sala de Situação.
Na decisão, o ministro reconheceu que o governo federal vem tomando iniciativas para mitigar a pandemia entre os povos indígenas.
“Entretanto, tais ações precisam ser coordenadas e precisam ser complementadas por medidas que não estão em curso. A criação sistemática de barreiras de proteção aos povos em isolamento e de contato recente não está em curso”, ressaltou na decisão.
“A assistência à saúde dos inúmeros povos indígenas localizados nas muitas terras indígenas ainda pendente de homologação não está em curso, o que os coloca sob risco de perecimento”, destacou ainda, ao acolher o pedido da Apib para reverter a decisão do governo de não garantir a todos os povos indígenas atendimento de saúde especializado.
Barroso determinou também que o governo crie em até 30 dias um Plano de Enfrentamento da Covid-19 para os Povos Indígenas Brasileiros, com a participação das comunidades e do Conselho Nacional de Direitos Humanos. Esse plano deverá conter medidas de contenção e isolamento de invasores em relação a terras indígenas.
Embora o Ministério da Saúde tenha elaborado em março o “Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo Novo Coronavírus em Povos Indígenas”, o ministro destacou o argumento da Apib de que esse planejamento “expressa meras orientações gerais e não prevê medidas concretas, cronograma ou definição de responsabilidades”. Além disso, ele frisou a importância de que as comunidades sejam ouvidas na elaboração dessas medidas.
“Esses pontos (medidas não tomadas pelo governo) só estão sendo percebidos porque os indígenas puderam se manifestar. Está claro, portanto, que tais povos, desde seu ponto de vista, são capazes de identificar providências e medidas, que, se ausentes, podem constituir um obstáculo para a efetividade das ações de saúde já pensadas pela União”, acrescentou o ministro. (BBC Brasil)