“A natureza começa a cobrar em dobro pela degradação no Sul. É preciso evitar um novo e gigantesco flagelo, este, na Amazônia Brasileira”
Faltou água em municípios de Rondônia no ano passado
MONTEZUMA CRUZ
Com fotos: BBC, Agência Brasil e Governo do Amazonas
De Washington, D.C. (EUA), onde mora há mais de três décadas, o rondoniense Samuel Sales Saraiva comenta a extensão de prejuízos do Rio Grande do Sul para Amazônia: “O que será dos povos empobrecidos e abandonados de nossa região quando explodir a resposta da natureza acionar a bomba-relógio plantada por pessoas que derrubam a floresta para ampliar cada vez mais o plantio de soja? “As lições tiradas dessas tragédias naturais precisam ser aprendidas para não castigarem povos de outras regiões pela busca tresloucada e agora permanente do lucro fácil” – afirma.
Samuel Saraiva propôs curso a tomadores de empréstimos: projeto engavetado
Ele lembra antigos projetos de sua autoria acolhidos por políticos de diversas siglas. Saraiva, ex- militante do antigo MDB nos anos 1970, fundador do PDT em Rondônia no início dos anos 1980, foi suplente de deputado federal e colaborador de diversos parlamentares de expressão nacional – com Álvaro Dias (Podemos), ex-candidato à Presidência da República, então líder dessa sigla no Senado; assessor parlamentar no Congresso Nacional para os estados do Espírito Santo e Rondônia, respectivamente nos governos de Max Mauro (ES) e Ângelo Angelin (RO); e consultor do Instituto de Assessoria e Pesquisa do Congresso Nacional (Ipeac).
PING-PONG
Efetivamente, o que você já fez pela melhora do meio ambiente na Amazônia?
Samuel Sales Saraiva – Além do meu Projeto Transfronteira, aprovado em todas as comissões temáticas da Câmara dos Deputados, editado pelo Parlamento latino-americano e disponibilizado nas bibliotecas do Congresso Nacional; também fui autor da proposta que obriga tomadores de empréstimos públicos ou privados que atuam no agronegócio ou em atividades que envolvam a questão ambiental, para que participem de um curso de educação nessa área, incluindo conhecimentos sobre os impactos ambientais e as penalidades previstas em lei. Infelizmente, propostas desse tipo desaparecem nos arquivos oficiais. O senador Álvaro Dias entregou a proposta oficialmente ao então ministro Sales no governo Bolsonaro, mas a indiferença prevaleceu. Quem sabe alguém no governo Lula tome a iniciativa de determinar um estudo a respeito.
Mas seria um curso obrigatório?
Sim, nada que o tomador de empréstimo cuidadoso com a natureza não possa fazer. Não é nenhum pecado ele ter melhores noções da realidade ambiental no planeta. Infelizmente, a gente vê que muitos teimam em tratar mal as pessoas que lhes querem bem e apenas buscam a garantia de um futuro mais seguro para gerações vindouras. A educação ambiental seria uma solução estrutural na formação de maior consciência ecológica, imprescindível para a sustentabilidade da atividade econômica.
Esse curso trataria também do Código Florestal?
Tempos atrás eu também apresentei sugestões ao presidente Lula quando de sua primeira visita a Washington depois de eleito, algo integralmente acolhido e que resultou na formatação do Plano Nacional Amazônia + Sustentável, dando origem à Portaria Ministerial assinada pelo atual ministro da Agricultura – a Portaria 575, de 5 de abril de 2023 incorporando cinco vertentes constantes da minha proposta.
Eu lembrava o estudo da legislação ambiental brasileira, com alerta a respeito das penalidades aplicáveis caso sejam violadas:
1 – Ampliação da produção sustentável de alimentos;
2 – Ampliação sustentável do extrativismo;
3 – Revitalização de seringais;
4 – Fomento à piscicultura;
5 – Recuperação de áreas degradadas e adoção de sistemas agroflorestais.
Está havendo uma polêmica: alguns parlamentares do Rio Grande do Sul e de Rondônia e de outros estados defendem ardorosamente suas propostas e até xingam em vez de dialogar…
Eu não diria ardorosamente, mas uma defesa burra. Cheguei à conclusão que muitos gaúchos, não todos, exportam para Amazônia a mesma filosofia de “agro progresso”, deixando desta maneira um custo ambiental enorme para a nação. Em termos de equilíbrio, a conta não fecha, exceto os benefícios imediatos que enriquecem os mais endinheirados do agronegócio. Já se estima que a recuperação do solo super degradado em municípios gaúchos vai demorar um século, e até lá nenhum de nós estará aqui para comemorar essa possível conquista. A natureza começa a cobrar em dobro pela degradação que acontece há mais de quatro décadas no Rio Grande do Sul, na Amazônia e noutras regiões brasileiras.
Explique isso.
Basta raciocinar: se na região sul trocar florestas por soja, tornou a região vulnerável as consequências catastróficas hora vivenciadas, não precisa ter visões proféticas para antever desdobramentos previsíveis no futuro da Amazônia. Paralelamente, o Cerrado chora. É o bioma mais ameaçado do País pela agricultura de larga escala, ocupa 23% do território nacional, com mais de 200 milhões de Km². Olha, um simples exercício de raciocínio com dados oficiais revela discrepâncias, porque as contas do agronegócio não fecham quando consideramos os lucros de US$ 16,2 bilhões em 2023 pela produção e vendas de soja, fumo e arroz.
De quem são esses dados?
São indicadores divulgados pelo Departamento de Economia e Estatística DEE-SPGG do Rio Grande do Sul. Em março do ano passado havia 372.008 vínculos ativos com carteira assinada no agronegócio gaúcho, geridos por 798 empresas. Para um estado com uma população estimada em 10,8 milhões de habitantes em 2024.
Além desses lucros ficarem nas mãos de um percentual muito pequeno de empresários, com uma mão de obra extremamente barata, os custos decorrentes do desequilíbrio ambiental se mostram extraordinariamente superiores.
Então fica difícil…
Se a gente comparar o número de desabrigados e de cidadãos de baixa renda que foram prejudicados e perderam quase tudo, ou tudo, em alguns casos, é fácil constatar que a ajuda federal para essa numerosa parcela da população tem um valor simbólico insignificante. Mais de 80 mil pessoas estão desabrigadas e o governo gaúcho estima em R$ 19 bilhões o custo para plano de reconstrução do estado após as enchentes. Parece claro que os empresários do agro lucraram por décadas e deixaram a conta das consequências ambientais para o Estado e a sociedade brasileira. Eles (os empresários) embolsam o lucro e nos passam a conta, e ainda buscam dinheiro fácil do governo federal e estadual. Isso é uma postura cretina e descabida quando não pensaram nas consequências.
Então, o curso de noções ambientais que você propõe passa ao rol das utopias…
É esperar para ver. Acho que eles não vão aprender a lição e continuam hoje em dia com projetos criminosos de derrubar matas na Amazônia para plantar grãos, corrompendo políticos e marginalizando as populações locais. Mas insisto no curso porque vejo o próprio governo federal ajudando humanamente a população afetada. No geral, é necessário mesmo fomentar estudos e ações com vistas a repensar a forma com que esses irresponsáveis estão lucrando com a derrubada de florestas inteiras que no futuro acarretarão um gigantesco novo flagelo, este, na Amazônia. O preço das catástrofes só será válido se delas tirarmos lições para evitá-las no futuro. A natureza cobra e a conta dos pecadores sempre acaba sendo paga com o sofrimento dos justos.
E o que dizer do Cerrado?
O Cerrado é a savana mais rica e úmida do planeta, possui até flores, plantas que alimentam lobos e outros animais, muito mais do que na própria Amazônia. E nele estão quase 70% das bacias hidrográficas do Brasil, 5% da biodiversidade de todo o mundo. Mesmo que esses dados sejam de pleno conhecimento dos políticos deste País, parece-me que uma energia medonha os move a optar pelo caos, basta analisar os projetos devastadores atualmente em discussão na Câmara e no Senado.
Impõe-se repensar com a mesma urgência os procedimentos inapropriados que contribuíram para o dimensionamento dessa catástrofe ambiental. Mais do que isso: dar um basta imediato à devastação da Amazônia, contrariando sua vocação econômica que é a produção de alimentos agroflorestais.
Eu vi uma imensa mata verde no interior do município de Candeias do Jamari ser derrubada rapidamente e nos dias seguintes o arado mecânico abrir o solo para o plantio de soja…
Esse avanço vem desde Mato Grosso, numa desenfreada ganância de quem planta. Não se come soja, ela vai toda embora. O mesmo tipo de bomba que explodiu no colo deles está sendo plantada por eles para explodir no nosso. É uma questão de tempo: a seca prolongada e suas consequências já deu um alerta que está sendo ignorado. Fique de olho no que acontecerá no verão deste ano em Rondônia e no Acre. A monocultura da soja continua contrariando a vocação econômica da região amazônica, nunca deram atenção ao sistema de integração floresta-pecuária, da Embrapa. O custo previsível será bem maior do que o lucro imediato desses malucos desprovidos de sensibilidade social e educação ambiental. Que aprendam fazendo um curso, antes de tomarem dinheiro do Banco Brasil e de outras instituições financeiras governamentais ou privadas.
O Rio Grande do Sul foi era um dos estados mais ricos do País, hoje vive uma situação abalada. A Amazônia sofrerá as consequências?
O Rio Grande está vivenciando essas consequências que irão impactar duramente o estado durante décadas. Aí pergunto se o que nós fazemos é lógico e procedente: o que será dos povos empobrecidos e abandonados de nossa região quando explodir a resposta da natureza acionar a bomba-relógio plantada por pessoas que derrubam a floresta para ampliar cada vez mais o plantio de soja? A natureza cobrará sem piedade a ignorância humana exercida no uso insano do livre arbítrio. Quem planta colhe, diz o ditado, e temos que escolher bem o que plantamos para comer no futuro um fruto de amargor insuportável. O plantio é livre, mas a colheita obrigatória, ouvimos isso desde criança e não aprendemos com as lições da história.
Assusta o que se vê na disputa pelo voto…
Estão aí a propor alterações no Código Florestal e, se pudessem, modificariam o clima, mas este tem lhes aplicado uma grande peia. Políticos majoritariamente migrantes do Sul ressuscitam a cada ano de eleição chamando seu eleitorado; patrocinam churrascos e mendigam migalhas do agro. Chocante mesmo, porque são aplaudidos pelo povo com olhar condicionado ao ângulo que lhes permite enxergar a “ideologia” ou simpatia política por aqueles que lhes dão tapinhas nas costas. O estadista inglês Winston Churchill, citou que “a principal diferença entre os humanos e os irracionais é que os animais nunca permitem os mais estúpidos liderem a manada.”
A política partidária se deteriorou com a eleição dos chamados deputados motosserras?
Eu digo que política se tornou de uns tempos para cá uma ciência, uma atividade cuja importância decorre da responsabilidade de regulamentar a ação das demais ciências, entretanto, quando exercida por desqualificados, apadrinhados ou indicados por vínculos familiares, se torna um desastre. Autoridades que deveriam dar prioridade ao planejamento estratégico, ao desenvolvimento sustentável, à atração de recursos externos no mundo em que a globalização irreversível impõe esse tipo de ações, usurpam o minguado dinheiro público e não conseguem amor para convergência de recursos privados através de fórmulas inteligentes e factíveis. Se dão por contentes em receber contracheques, posar em eventos religiosos, ou atuam como se estivessem num eterno comício buscando impressionar incautos, na maior cara-de-pau, sem o menor sentido do ridículo ou consciência de suas responsabilidades e prerrogativas institucionais.
Seu raciocínio é verdadeiro, doloroso…
Vejo a atuação de grande parte desses senhores das atuais legislaturas na Câmara e no Senado e até mesmo secretários estaduais, pasme, como se fossem animadores de vaquejadas ou marqueteiros para venda de peixes no exterior. Temos exemplos do Amapá ao Acre, de Rondônia ao Pará – um horror. Substituem, exibindo-se com terno e gravata, ao papel de organismos federais e estaduais no fomento a feiras internacionais no comércio exterior. Essa gente prefere torrar o público em turismo oficialesco desnecessário e fraudulento, com diárias polpudas e passagens internacionais, levando junto um séquito de asseclas e pelegos que se nutrem como sanguessugas nas tetas da moribunda vaca do erário. Zombam da ética e atropelam a moralidade.
A pergunta é sempre a mesma: quem paga a conta?
A conta das desgraças é paga por toda a nação com o nome de solidariedade. O povo sofre por falta de conhecimento. Tem muito mais gente morta por omissão dos governos e exploração desenfreada dos recursos naturais. A natureza só está devolvendo a “gentileza pra gente lesa.”
Estupidez chama estupidez: e ainda espalham fakes para dizer, por exemplo, que o governo federal “não apoiou em nada o Rio Grande”
Daí para muito mais, numa máquina sórdida do que antigamente se chamada espalhafato. Pior é que, enquanto parte do povo demonstra não ter memória, outra parte apoia esses pilantras por se identificarem com o mau-caratismo mesmo.
Embora o povo gaúcho mereça, sim, ser ajudado…
Sim, precisa muito. Mesmo que se dê sentido ao ditado popular dizendo que o justo paga pelo pecador. Mas as lições tiradas dessas tragédias naturais precisam ser aprendidas para não castigarem povos de outras regiões pela busca tresloucada e agora permanente do lucro fácil, sem a preocupação das consequências ambientais que deixam para o resto da nação pagar. Uma injusta e pesada conta será o legado que ficará para a posteridade, num atestado vergonhoso de incompetência e descaso.
Algo mais a considerar?
Quero dizer que, ao contrariar a vocação econômica da Amazônia, “sineiros” do Sul exportam por ignorância suas tragédias ambientais em nome do falso progresso que não chega à população. O empobrecimento intelectual e moral dos governantes irresponsáveis e desprovidos do senso do ridículo, somado ao emburrecimento da sociedade brasileira, deixa uma angustiante sensação de impotência e legítima indignação.